Durante anos, cientistas souberam que alguns tipos de câncer não seguem o “ritmo esperado” de evolução. Em vez de acumular mutações lentamente, como acontece na maioria dos tumores, eles parecem dar saltos bruscos — mudam rápido, se adaptam e escapam dos tratamentos. Agora, um estudo liderado por pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Diego ajuda a explicar por quê.

A pesquisa identificou a enzima responsável por iniciar a cromotripsia, um fenômeno em que um cromossomo inteiro se quebra em dezenas — às vezes centenas — de pedaços e é remontado de forma desordenada dentro da célula.

O resultado é um verdadeiro caos genético, que favorece o crescimento do câncer e sua resistência às terapias.

 O que é cromotripsia e por que ela assusta os cientistas

Em condições normais, alterações no DNA acontecem aos poucos. Já na cromotripsia, tudo ocorre de uma vez só, como se um livro fosse rasgado em dezenas de páginas e depois reencadernado fora de ordem.

Esse tipo de evento é considerado raro em células saudáveis, mas surpreendentemente comum em tumores. Estimativas indicam que cerca de um em cada quatro cânceres humanos apresenta sinais de cromotripsia. Em alguns tipos, como o osteossarcoma (um câncer ósseo agressivo), ela está presente em praticamente todos os casos.

Esse processo dá ao tumor uma vantagem evolutiva: com tantas alterações genéticas de uma só vez, as células cancerígenas podem encontrar rapidamente caminhos para driblar medicamentos e continuar se multiplicando.

O mistério: quem ‘quebra’ o cromossomo?
Apesar de a cromotripsia ter sido descrita há mais de dez anos, os cientistas ainda não entendiam como esse processo começava. Sabia-se apenas que ele estava ligado a falhas na divisão celular — o momento em que uma célula se divide em duas.

Em uma divisão normal, os cromossomos ficam organizados dentro do núcleo da célula, protegidos por uma espécie de “capa”. Mas, quando ocorre um erro, um cromossomo pode ficar isolado do resto e acabar preso dentro de uma estrutura menor e muito mais frágil, chamada micronúcleo.

 

Esse micronúcleo funciona como uma bolha mal protegida. Se ele se rompe, o cromossomo que está ali dentro fica exposto, sem defesa, como um fio elétrico desencapado.

O que ninguém sabia até agora era o passo seguinte: quem ou o quê aproveita essa exposição para começar a quebrar o DNA em pedaços.

A grande pergunta era justamente essa: qual enzima consegue entrar nesse micronúcleo e dar início à destruição do cromossomo?

A resposta: uma enzima chamada N4BP2

Para encontrar essa resposta, os pesquisadores analisaram todas as nucleases humanas conhecidas (enzimas capazes de cortar DNA) observando, em tempo real, o que acontecia dentro de células cancerígenas.

O resultado foi claro: apenas uma delas, chamada N4BP2, conseguiu entrar nos micronúcleos e provocar danos extensos ao DNA.

Quando os cientistas retiraram essa enzima de células de câncer cerebral, a fragmentação cromossômica despencou. Quando fizeram o oposto — forçaram a presença da N4BP2 no núcleo de células saudáveis —, cromossomos intactos começaram a se quebrar.

Em outras palavras, a enzima não apenas estava associada ao fenômeno: ela era suficiente para causá-lo.

Como isso afeta o tratamento do câncer
Ao ampliar a análise para mais de 10 mil genomas de diferentes tipos de câncer, os pesquisadores encontraram um padrão consistente. Tumores que produziam grandes quantidades da enzima N4BP2 eram justamente aqueles com mais sinais de cromotripsia — ou seja, com cromossomos quebrados e rearranjados de forma caótica.

Nesses mesmos tumores, os cientistas também observaram algo já conhecido por oncologistas: níveis elevados de DNA extracromossômico, o chamado ecDNA.

Diferentemente do DNA “normal”, organizado em cromossomos, o ecDNA aparece na forma de pequenos anéis soltos dentro da célula e costuma carregar genes que aceleram o crescimento do câncer.

Por isso, o ecDNA está fortemente associado a tumores mais agressivos e difíceis de tratar, já que ajuda o câncer a driblar medicamentos.

Até agora, esse DNA extracromossômico era tratado quase como um fenômeno à parte. O novo estudo, porém, indica que ele pode ser uma consequência direta da cromotripsia: quando um cromossomo se fragmenta de forma desordenada, alguns desses pedaços passam a circular de forma independente dentro da célula, dando origem ao ecDNA.

Um novo alvo para frear a evolução do tumor
Ao identificar a N4BP2 como o “gatilho” desse processo, o estudo abre uma nova frente de investigação: será possível bloquear essa enzima — ou as vias que ela ativa — para reduzir o caos genético do câncer?

A ideia não é, necessariamente, eliminar o tumor de imediato, mas frear sua capacidade de se adaptar, reaparecer e se tornar resistente aos medicamentos.

Para os autores, entender como a cromotripsia começa muda a forma de pensar o tratamento dos cânceres mais difíceis. Em vez de correr atrás de mutações que surgem depois, a ciência passa a olhar para o momento em que o desastre genético é iniciado.

G1